sexta-feira, 20 de janeiro de 2012


        REFLEXÕES DE UMA CONDENADA Á FOGUEIRA.
                                              
                                             
                                         
Era inicio de primavera, o clima perfeito para uma tarde romântica. Correr nos campos tangendo corvos e pássaros, ou quem sabe cavalgar livre sentindo o vento frio no rosto, chegar a Aldeia de Kalppe atrás das montanhas, visitar Duanna, falar de magias de amor e de celebrações.

Mas isso é impossível! Estou presa neste calabouço há duas luas e nem sei o motivo. Ouvi comentários que seria condenada a fogueira por ser uma Bruxa. Mas por ser uma Bruxa serei levada a morte tão cedo e de forma tão violenta? Afinal tenho só 20 anos, me sinto bela, tenho tantos planos para o futuro... Morrer sem conhecer a montanha dourada que a avó tanto falava. E os filhos? Também não os terei... Como podem matar uma mulher que nem cumpriu ainda a sua sagrada missão no mundo que é a de pari?

Seria uma boa mãe, lhes ensinaria a arar a terra com os devidos cuidados para não ferir as entranhas da grande Mãe. Depois lhes ajudaria a cuidar da plantação e a colher.
Quando o trigo fosse debulhado, lhes ensinaria a fazer pão. Ah! O pão! Alimento sagrado dos Deuses... Seria maravilhoso correr nos campos com minhas crianças, conduzir os rebanhos montanha a cima e na hora do ocaso parar. Observar o Deus Sol se recolher e a Grande Deusa Lua chegar. Orar por todos os filhos do mundo e pedir abundância, pediria a Deusa Lua que iluminasse meus irmãos e promovesse a fartura na próxima colheita. E finalmente chegaria o Samhain. Dançaríamos em volta das fogueiras, celebrando o dia em que nossas ancestrais passam pelos portais da transformação para nos envolver de amor e luz.

Não. Nada disso acontecerá! Não vou mais poder acender lanternas em abóboras nos caminhos do bosque para sinalizar o local das nossas celebrações. Não vou tomar vinho agradecendo ao Dionísio pela alegria de viver, não vou mais tear meu melhor vestido para as danças sagradas no Festival de Rhiannon. Meu Caldeirão, onde preparo meus chás que curam os males dos corpos, será execrado e esquecido em livros de terror para as criancinhas.

Vão me mandar para a terra do verão sem sequer me ouvir, sem que eu fale dos meus sonhos de inverno. Sem que eu possa cantar minhas canções de amor e fé pelas belezas da Grande mãe, a natureza. Obrigam-me a partir sem me doar a um parceiro de trilha na terra, rolar na relva sem sentir a beleza da entrega dos corpos ao fundir masculino e feminino no coito sagrado da procriação, com as bênçãos de Belenos.


E antes de acontecer o inevitável, o sol vai iluminar toda a terra sagrada e eu serei só luz, meu corpo nada sentirá, pois estarei sob a proteção da Deusa mãe.
No inverno estarei presente no fogo das lareiras dos meus inquisidores lhes aquecendo os corpos e os corações. No verão o sol abrasará seus dias e seus pântanos, na primavera voltarei na luz refletida em cada hortênsia. No outono, estarei nas réstias de luz por entre nuvens. Serei plena e crescerei. Retornarei quando o homem determinar o fim dos tempos. Quando o homem for livre e a justiça real. Quando os direitos humanos forem respeitados e a fé restaurada. Retornarei quando os homens cansados de julgarem-se a si mesmos e de si auto condenarem, revoguem as leis da Grande mãe, sem anular o poder sagrado da maternidade, e não a camuflem com lendas de homens que parem pelas costelas. Retornarei ao grande útero da mãe terra, quando esta despertar nas almas e nos corações das mulheres livres de preconceitos e “pecados”. Voltarei quando os homens respeitarem a mulheres que deixam seus leitos no silêncio da noite sob o frio do inverno para ajudar a outra mulher dar a luz a mais um ser humano.


Voltarei quando uma mulher tiver o supremo direito de subir em uma tribuna e reivindicar seus direitos, sejam de que ordem for como nossas ancestrais  faziam. Voltarei quando não mais for preciso esconder meus sagrados objetos de magia ou queimar meu livro de Capa Preta. Voltarei quando possa andar livremente pelos caminhos que eu mesma decida trilhar. Voltarei quando eu e minhas irmãs de crença possamos dançar e cantar em praças públicas, louvando nossos Deuses sem sermos apedrejados. Haverá essa época verdadeiramente?

As horas passam lentamente nesta manhã.
Ouço ao longe os tambores dos inquisidores... Quem teria me entregado aos senhores da “Santa Inquisição”?
Seria aquela mulher que é triste e amarga porque a lepra lhe putrifica as carnes, por inveja da minha juventude e da minha pele viçosa? Ou seria aquele velho sujo do provedor inquiridor que queria meus carinhos e vivia a me perseguir até eu lhe chamar de porco imundo...
Seria aquela nova vizinha do rancho do vale? Ela estava sempre falando da minha plantação de hortênsias, gostaria de ter igual, se assim foi, ela agora será a sua proprietária, pois me condenou pelas leis da Inquisição, quem entrega uma Bruxa aos inquisidores recebe seus bens como pagamento, depois é claro, de tirar a parte da igreja. Mas isso já não faz diferença. São pobres de alma e de sentimentos, cegos pela ânsia do poder. Do Ter, de possuir bens materiais, esquecem do quanto é efêmera a alegria das coisas físicas. Esquecem da beleza do caminho simples dos Deuses.
Da transparência da água, da dança do fogo, do poder do vento e da sabedoria da terra. Esquecem da clemência e da lucidez dos nossos Deuses, e se deixam aprisionar por um único Deus poderoso e vingativo. Imposto por homens que usam seu nome para espalhar dor e sofrimento. Um Deus que só vê com bons olhos homens que lhe seguem com rigor, que por ignorância nada questionam simplesmente se deixam escravizar por este Deus forjado para aprisionando os filhos da Grande Mãe a dogmas que eles mesmos criaram.

Roubaram nossos símbolos sagrados e os transformaram em seres malévolos, demônios e diabos, entidades essas que jamais ouvimos falar. Sabemos que o mal existe, tanto quanto o bem. São as energias naturais opostas no universo. Podemos fazer muito mal aos nossos irmãos e as coisas da grande mãe se não soubermos usar essas energias com altruísmo e sabedoria, precisamos ter a real consciência do quanto é importante este discernimento.

O que importa agora é que sou impotente para transformar essa moléstia instalada nas nossas vidas, mas voltarei minha essência para reverter esse poder imbecil e inominável. Voltarei com as bênçãos de Gaia, para promover o despertar da Deusa Mãe de forma intensa, natural e interna nas almas e nos corações dos homens. Ela será tão natural e forte que estará imaculada na própria vida da mulher, poderá ser conhecida ou não. Para ser conhecida, a mulher terá que ir buscá-la dentro do próprio coração, nas entranhas, sem depender de ninguém para mostrá-la. Se nunca a encontrar será porque nunca esteve suficientemente preparada para tamanha responsabilidade.
Voltarei quando o respeito às leis que regem o universo sejam universalmente conhecidas, que os homens tenham certeza seja por que meios forem, que nós somos parte, mesmo que infinitamente pequenos, de um grande sistema que gera vida unificada. Que somos todos iguais feitos do mesmo pó, retornamos a ele e dele partimos para completar o grande circulo que chamamos de tempo.
Ouço passos, deve ter chegado o momento de me conduzirem ao patíbulo. Desnudarão as minhas vestes e a minha dignidade humana. Anotarão meu nome para engrossar a lista dos que ousarem nascer e viver livre, dos que amaram e viveram intensamente seus amores, dos que não se amedrontaram pelos conflitos naturais da vida, pelos que não se intimidaram pelas causas da Deusa Mãe, a natureza.


Vão denegrir a minha imagem e a minha fé. Vão reverter meus princípios e meus ideais. Vão corromper minha história. Vão me condenar mais uma vez aos mistérios de terror. Vão envolver meus descendentes na ignorância ao longo de dois mil anos. Transformarão as minhas preces em risos sarcásticos e gritos tenebrosos. Chamarão nossos ungüentos, nossos chás e ervas de recursos primitivos. Esquecerão o quanto nossas ancestrais se sacrificaram para colher e descobrir ervas que curam e alimentam.
Desenvolverão técnicas que chamarão de ciências, em cima dos nossos parcos recursos primitivos, e jamais o reconhecerão.
Para se tornarem populares associarão nossos Deuses aos seus Deuses, e alterarão nosso calendário para que os pagãos celebrem seus Deuses, pensando estar celebrando nossos Deuses.
Ridicularizarão o nosso circuito de energia com as fases da Deusa mãe lua. Darão outros nomes ao que chamamos de rio interno da Deusa que promove a vida. Espalharão a idéia de que é sujo e nojento o nosso sangue sagrado de mulher.

Farão com que os incautos acreditem que adorar a Deusa cheia e plena os tornará loucos. Criarão argumentos pobres e imbecis para justificar os fenômenos naturais, o que também chamarão de ciências.
As mulheres serão condicionadas a serem escravas dos homens. Até mesmo do seu próprio homem, aquele a quem escolheu para rolar na relva.
Não haverá mais mulheres Sacerdotisas, pois o poder, até o dos Deuses estará exclusivamente na mão dos homens. Será o período onde até as mulheres, que conhecem a dor do parir, dependerá do macho para sobreviver. Muitas delas farão desta situação condição única de sobrevivência. Situação essa, que aliada à condição material e emocional, as tornará também, escravas por um longo período no tempo.
Será um período tão nefasto, que as mulheres usarão seu corpo como arma, não com liberdade de amar na relva sob as bênçãos de Belenos, mas rolar nos leitos para sobreviver. E o que será pior, sem se dar conta da perda do seu poder do feminino. Será o período de alienação total da mulher, até que a Deusa mãe seja resgatada e instalada definitivamente nas almas e nos corações.


Então, nós Bruxas, estaremos de volta. Resgatando a pureza de ser fêmea, mãe, parceira e companheira do nosso homem. Escolhendo e sendo escolhida. Desenvolvendo nossas habilidades profissionais. Independente de raça, religião ou cor, seremos mulheres simplesmente, a contraparte do homem. Diferentes, porém harmonizados. Opostos, porém parceiros.
Me conduzem ao patíbulo... É chegado o momento da transformação!
Estarei de volta na era de Aquários!
Texto do Livro GESTANDO A MINHA DEUSA INTERIOR de Graça Lúcia Azevedo / Senhora Telucama.
Suma Sacerdotisa do Templo Casa Telucama